Volume anaeróbico no treinamento

No final de 2022 eu participei do II Simpósio Internacional Online de Ciências do Exercício e do Esporte organizado pela Universidade Federal do Espírito Santo.

Eu recebi três perguntas que não foram respondidas por causa do tempo.

Esse vídeo é a resposta à pergunta 2.

Eu espero que a resposta chegue aos colegas que fizeram a pergunta.

PERGUNTA 2 do Henrique Lourenço – Guilherme, especificamente aos atletas de provas anaeróbicas, não seria necessária uma maior presença de estímulos anaeróbicos mesmo na preparação geral onde há predominância aeróbica?

Olá, Henrique.

Obrigado pela sua pergunta.

Mais uma vez a pergunta pode parecer simples. Ou até mesmo é. Mas a resposta é difícil.

Eu me lembro que você fez essa pergunta em um contexto em que falávamos de Periodização do Treinamento.

Eu discutia sobre o modelo de Periodização Tradicional e o Modelo em Blocos.

Como você citou a Fase de Preparação Geral eu entendo que está se referindo ao modelo de Periodização Tradicional.

Nesse modelo nós temos o desenvolvimento simultâneo das diversas capacidades motoras ao longo dos períodos da periodização. O que muda é o percentual dedicado de cada uma dessas capacidades motoras.

E aí vem a sua pergunta: para atletas de provas anaeróbicas, não seria necessária uma maior presença de estímulos anaeróbicos mesmo na preparação geral?

E a minha resposta é: NÃO SEI.

Vou me explicar depois apresento algumas possibilidades para te ajudar a chegar a sua resposta.

O QUE SÃO PROVAS ANAERÓBICAS?

Nós podemos entender como provas (eventos competitivos) anaeróbicas aquelas que tenham uma duração entre 1 s e cerca de 2 min. Esse é o intervalo de tempo no qual podemos encontrar, em estímulos máximos, grande contribuição do sistema anaeróbico (FOSS e KETEYIAN, 2000; MCARDLE, KATCH e KATCH, 2011).

Se o evento estiver mais próximo do limite inferior (até por volta de 15 s), estamos falando de uma condição alática. A partir de mais ou menos 15 s começamos a ter cada vez mais uma participação lática. Mais ou menos próximo dos 75 s, cerca de 50% da contribuição energética ocorre por via aeróbica (CAPUTO et al., 2009).

Esses tempos são estimados porque dependem do nível de treinamento do atleta; ou seja, de quem estamos falando. A maioria das pessoas normais (não treinadas) não conseguem sustentar um exercício realmente intenso quando estamos falando de metabolismo anaeróbico lático.

Onde eu quero chegar com essa discussão? Você está falando de um atleta de arremesso de peso, de um nadador de 50 m, de um corredor de 800 m ou de um nadador de 200 m?

Entende a reflexão? Eu entendo que você estava falando de “atletas de provas anaeróbicas” no geral. Entretanto, eu precisava trazer esse ponto. E por isso que a resposta é difícil.

DISTRIBUIÇÃO DAS ZONAS DE INTENSIDADE DO TREINAMENTO

Como eu disse anteriormente, no Modelo de Periodização Tradicional há o desenvolvimento simultâneo das capacidades motoras. O que muda é o percentual do tempo dedicado a cada uma delas.

Tradicionalmente se divide o treinamento em três zonas de intensidade tendo como base limiares fisiológicos (BOURGOIS, BOURGOIS e BOONE, 2019; GRONWALD, ROGERS e HOOS, 2020; STÖGGL e SPERLICH, 2015):

  • Zona 1: caracterizado por estímulos de elevado volume e baixa intensidade. Assim, temos estímulos abaixo do primeiro limiar ventilatório, até o limiar aeróbico ou uma concentração de lactato abaixo de 2mM.
  • Zona 2: treino realizado principalmente na intensidade correspondente a do limiar anaeróbico. Assim, temos estímulos no segundo limiar ventilatório e com lactato próximo de 4 mM. São realizados principalmente estímulos contínuos ou intervalados com intensidade moderada-intensa.
  • Zona 3: caracterizado por estímulos de elevada intensidade. Assim, temos estímulos com mais de 4mM de lactato e com FC maior do que 90% do máximo. São realizadas principalmente treinos intervalados, intermitentes ou de velocidade.

Assim, dependendo do percentual do tempo dedicado a cada zona de intensidade foram propostas três classificações (BOURGOIS et al., 2019; GRONWALD et al., 2020; STÖGGL e SPERLICH, 2015):

  • Modelo Piramidal: há uma maior proporção do treino em baixa intensidade, seguido do treino no limiar anaeróbico e, em menor parte, ao treino de elevada intensidade. Assim, temos: Zona 1 – >70%; Zona 2 – cerca de 20%; Zona 3: cerca de 10%.
  • Modelo Polarizado: consiste em uma significativa proporção dos treinos de baixa e elevada intensidade, restando uma pequena parte para o treino no limiar anaeróbico. Assim, temos: Zona 1 – 70-80%; Zona 2 – 0-10%; Zona 3: até 20%.
  • Modelo no Limiar: há uma proporção semelhante no volume de treino de baixa intensidade e do limiar anaeróbico, restando a menor parte ao treino de elevada intensidade. Zona 1 – cerca de 40%; Zona 2 – cerca de 40%; Zona 3: cerca de 20%.

Apesar da existência desses três modelos, saibam que existe uma certa variação entre as modalidades esportivas, entre os momentos da periodização, entre os atletas, e diversos outros fatores que deve ser levados em consideração.

Assim, adotar um Modelo Polarizado, por exemplo, não significa necessariamente que toda a periodização terá a mesma proporção das três zonas de intensidade.

Ou seja, da fase de preparação geral até a específica com o mesmo padrão de distribuição. Você pode assumir diferentes modelos de distribuição ao longo da periodização (um para cada fase) e, no final, ter um outro modelo.

Além disso, qual a duração do ciclo de treinamento? Quais deficiências você está tentando solucionar?

A mesma coisa em relação aos atletas. Estamos falando de um atleta em formação ou de um atleta adulto? Ele está se preparando para uma competição nacional ou internacional?

Percebeu como é complexo?!

E para melhorar a situação, a grande questão é que a maior parte dos artigos discutem a ocorrência desses três modelos de distribuição das zonas de intensidade em atleta de meio fundo e fundo.

Mas a sua questão, para facilitar a minha vida, é para atletas de provas curtas – anaeróbicas.

Por isso que eu disse que a minha resposta era “não sei”.

 

MAS VAMOS LÁ, EU DISSE QUE TE AJUDARIA

O que temos na literatura para atletas bem treinados em provas de resistência está listado abaixo (BOURGOIS et al., 2019; STÖGGL e SPERLICH, 2015):

  • O que temos na literatura é que para atletas de meio fundo e fundo de elite, o Modelo Piramidal parece ser o mais utilizado e tem seus benefícios.
  • De qualquer maneira, o Modelo Polarizado tem demostrado ser uma estratégia eficiente para atletas de elite durante algumas fases da temporada.
  • Além disso, estudos com duração entre 6 semanas e 5 meses demostraram respostas superiores como o uso do Modelo Polarizado quando comparado ao Piramidal e no Limiar.
  • Esse padrão de distribuição (Piramidal) melhora o desempenho com menos estresse autonômico e hormonal bem como tédio/monotonia.

Felizmente eu consegui achar um artigo (MATZKA et al., 2022) com atletas de provas de velocidade. Não são nadadores, mas atletas de provas de velocidade de caiaque e canoa.

Nesses atletas o Modelo Piramidal foi aquele utilizado. Só por curiosidade, para as três zonas de intensidade, no que os autores chamaram de período de preparação 1 (PP1 – que eu acredito que seja a fase de preparação geral), período de preparação 2 (PP2 – que eu acredito que seja a fase de preparação específica) e de competição (CP), as proporções foram, respectivamente de

  • PP1: 84/12/4%,
  • PP2: 80/12/8%,
  • CP: 91/5/4%.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das discussões que fiz até aqui você pode conhecer um pouco do que geralmente é feito. Use essa informação com o seu ponto de partida. Avalie as outras variáveis e trace um plano.

Converse com o seu atleta, pense em alguma proposta, organize-a racionalmente e a coloque em prática.

Se você acha que deve haver uma maior proporção dos estímulos anaeróbicos, faça isso.

Depois você me conta o resultado.

Espero ter ajudado.

 

SUGESTÃO DE LEITURA

BOURGOIS, J. G.; BOURGOIS, G.; BOONE, J. Perspectives and determinants for training-intensity distribution in elite endurance athletes. International Journal of Sports Physiology and Performance, v. 14, n. 8, p. 1151-1156, 201J.

CAPUTO, F.; OLIVEIRA, M. F. M. D.; GRECO, C. C.; DENADAI, B. S. Exercício aeróbio: Aspectos bioenergéticos, ajustes fisiológicos, fadiga e índices de desempenho. Revista Brasileira de Cineantropometria e Desempenho Humano, v. 11, n. 1, p. 94-102, 2009.

FOSS, M. L.; KETEYIAN, S. J. Fox: bases fisiológicas do exercício e do esporte.   Guanabara Koogan, 2000.

GRONWALD, T.; ROGERS, B.; HOOS, O. Fractal correlation properties of heart rate variability: A new biomarker for intensity distribution in endurance exercise and training prescription? Frontiers in Physiology, v. 11, p. 550572, 2020.

MATZKA, M.; LEPPICH, R.; HOLMBERG, H.-C.; SPERLICH, B.; ZINNER, C. The Relationship Between the Distribution of Training Intensity and Performance of Kayak and Canoe Sprinters: A Retrospective Observational Analysis of One Season of Competition. Frontiers in Sports and Active Living, v. 3, p. 371, 2022.

MCARDLE, W. D.; KATCH, F. I.; KATCH, V. L. Fisiologia do exercício: nutrição, energia e desempenho humano. Traduzido por Giuseppe Taranto. 7ª ed. Rio Janeiro: Guanabara Koogan, v. 83, p. 3322-3222, 2011.

STÖGGL, T. L.; SPERLICH, B. The training intensity distribution among well-trained and elite endurance athletes. Frontiers in Physiology, v. 6, p. 295, 2015.

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