A Periodização do Treinamento Esportivo, o Treinamento em Longo Prazo e a massa do bolo
- Postado por Guilherme Tucher
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- Data 26 de janeiro de 2022
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Quem me conhece um pouco já deve ter percebido o quanto acho importante que nossas atividades sejam planejadas e organizadas. Entendo que agindo assim, no mínimo, não desperdiçamos o nosso tempo.
Um amigo comenta que até a minha ida ao mercado é periodizada. Ele não passa de um implicante, apesar de esta certo.
Alguns alunos dizem que sou sistemático, com um leve desdém e intenção de dizer que sou problemático. Isso tudo porque eles cismam em não estudar e eu cobro deles conhecimento. De qualquer maneira, não que eu me ache merecedor desse rótulo, para mim, o termo soa como um elogio.
Mas eu entendo. As pessoas não são muito boas em organizar as suas vidas e atividades. Por isso, termos como planejamento, organização, sistematização causam certo desconforto – como pó de mico. As pessoas simplesmente não sabem o que fazer.
Resolvi procurar na internet mais sobre o “sistemático” para poder pautar o meu texto. No site www.significados.com.br achei, por exemplo que “o conhecimento sistemático é o conhecimento que é organizado de maneira lógica, de forma que seja composto por um encadeamento de ideias em sequência e conectadas”.
Isso me parece bom!
Por sua vez, uma pessoa sistemática é “uma pessoa que age ou realiza suas atividades de acordo com um método ou uma forma de organização específica”.
Isso também me parece bom.
Na educação física existem duas propostas de racionalização (de sistematização) do processo de preparação de atletas. Uma delas é chamada de (a) Periodização do Treinamento Esportivo e a outra de (b) Treinamento em Longo Prazo (TLP).
A Periodização do Treinamento Esportivo refere-se à utilização de certos conceitos, princípios e métodos para a preparação mais imediata do atleta para que possa participar de uma competição. Eu reconheço como os principais modelos de periodização do treinamento esportivo o modelo Tradicional (fase de preparação geral, específica e de competição) e o modelo em Blocos (fase de acumulação, transformação e realização) (ISSURIN, 2008; ISSURIN, 2010; ISSURIN, 2016).
O Treinamento em Longo Prazo (TLP) (ou Desenvolvimento Atlético em Longo Prazo) refere-se ao período de mais ou menos 10-15 anos de formação de um atleta – desde a sua infância até a idade adulta. Uma das propostas que mais me identifico divide esse período em sete estágios: (a) Início Ativo (0-6 anos), (b) Fundamental (6-9 anos), (c) Aprender para Treinar (8-12 anos), (d) Treinar para Treinar (11-16 anos), (e) Treinar para Competir (15-23 anos), (f) Treinar para Ganhar (+18 anos) e (g) Ativo para a vida (+12 anos) (BALYI, WAY e HIGGS, 2013; BEAUDOIN, CALLARY e TRUDEAU, 2015).
A Periodização do Treinamento Esportivo e o TLP são duas propostas filosóficas que tentam organizar, planejar, sistematizar e racionalizar algo que é extremamente complexo na preparação do atleta – o tempo.
Por meio das suas propostas um período de tempo maior é dividido em períodos de tempo menores, e depois menores e depois menores. Os períodos maiores, com seus objetivos também maiores, são operacionalizados pelos períodos menores, com seus objetivos também menores (parciais).
Em tese, se esses objetivos menores forem alcançados, um a um, os objetivos maiores também serão. Ou seja, para acertar em um devemos acertar no outro
Apesar de amplamente aceitos por treinadores e pela literatura, essas duas propostas também recebem críticas dos próprios treinadores e de pesquisadores. Algumas dessas críticas são legítimas, mas outras na minha opinião são culpa do cozinheiro. Me explico.
Qualquer proposta de organização do treinamento esportivo deve ser por essência, genérica e global. São muitas modalidades esportivas e atletas dos mais variados níveis. Ou você acredita que há um modelo de periodização feito justamente para você? Será o treinador, com base nos seus conhecimentos, nas características do esporte e nas necessidades específicas dos atletas, que tornará as informações gerais em informações uteis.
A periodização do treinamento esportivo e o treinamento em longo prazo são a forma do bolo, não são a massa. Você pode escolher uma forma redonda, quadrada ou retangular, mas se você não souber preencher essa forma com uma massa de qualidade, o resultado será ruim. Mas a culpa seria da forma do bolo ou do cozinheiro?
É o cozinheiro que prepara a massa, aquece o forno e sabe o tempo de preparo. Se qualquer coisa não sair como previamente planejado é o cozinheiro que também precisa resolver.
Um prédio é formado por vários apartamentos mais ou menos iguais, se visto de fora. Mas o seu interior pode ser completamente diferente, já que os moradores são diferentes. Como os moradores são diferentes, tem necessidades diferentes.
O sofá estará sempre na sala, mas pode estar em uma parede diferente. Pode ser um sofá pequeno para uma família pequena. Ou um sofá grande, caso você goste de receber visitas.
Assim, apesar do modelo de periodização tradicional ser sempre dividido em fases de preparação geral, específica, de competição e transição – a duração de cada uma dessas fases dependerá das necessidades do atleta, por exemplo. Da mesma maneira, a periodização não dirá para você o quanto o atleta precisa nadar, correr, pedalar, descansar e competir. Isso é a massa do bolo.
Essa é uma responsabilidade do cozinheiro.
Um estudo de 2015 (BEAUDOIN et al., 2015) com treinadores canadenses verificou as dificuldades e as facilidades na adoção e implementação do TLP.
No geral os treinadores se identificaram, aderiram a visão global e aos princípios gerais do TLP. Entretanto, alguns pontos merecem ser destacados:
- Em alguns casos, uma diferença de visão entre os resultados esportivos de curto prazo e os de longo prazo parece ser um impeditivo em sua utilização.
- Os pressupostos do TLP parecem, em princípio, fáceis de entender. Entretanto, o seu uso no dia a dia é mais difícil e requer mais conhecimento sobre aspectos relacionados ao treinamento de crianças e jovens.
Perceba que nos dois casos o problema me parece mais em saber fazer a massa do bolo, e não da forma.
Os modelos de periodização do treinamento esportivo e a teoria do TLP ditam regras gerais que norteiam o nosso trabalho. Eles são a forma do bolo, são a estrutura do prédio. São o mapa que você utilizará para sair do ponto A e chegar no ponto B.
Entretanto, a massa do bolo depende do cozinheiro. A organização da casa depende do seu morador. Da mesma maneira, a condução do treino depende do treinador.
O mapa te dirá as cidades que você precisa passar no seu trajeto e até a distância entre elas. Mas será incapaz de te dizer quando acontecerão acidentes, quando você deve ultrapassar outro carro ou tomar cuidado com o cachorro que atravessa a pista. Tudo isso é função do motorista atento.
Dessa forma, antes de dizer que algo não funciona, você precisa saber como ele funciona. E lembre-se, uma coisa é a forma do bolo. Outra, é a massa do bolo.
Sugestão de leitura:
BALYI, I.; WAY, R.; HIGGS, C. Long-term athlete development. Human Kinetics, 2013.
BEAUDOIN, C.; CALLARY, B.; TRUDEAU, F. Coaches’ adoption and implementation of sport Canada’s long-term athlete development model. SAGE Open, v. 5, n. 3, p. 1-16, 2015.
ISSURIN, V. Block periodization versus traditional training theory: a review. Journal of Sports Medicine and Physical Fitness, v. 48, n. 1, p. 65-75, 2008.
ISSURIN, V. B. New Horizons for the Methodology and Physiology of Training Periodization. Sports Medicine, v. 40, n. 3, p. 189-206, 2010.
ISSURIN, V. B. Benefits and limitations of block periodized training approaches to athletes’ preparation: a review. Sports Medicine, v. 46, n. 3, p. 329-338, 2016.
É docente no curso de graduação e no programa e pós-graduação em educação física da Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na EEFD ainda é coordenador do Grupo de Pesquisa em Ciências dos Esportes Aquáticos (GPCEA).
Doutor em Ciências do Desporto (2015), Mestre em Ciência da Motricidade Humana (2008), Especialista em Esporte de Alto Rendimento (2014), em Natação e Atividades Aquáticas (2004) e em Treinamento Desportivo (2005), e Graduado em Educação Física (2003).
Docente no ensino superior desde 2005, atuou ainda como professor de natação trabalhando com diferentes níveis de aprendizagem e aperfeiçoamento, bem como treinador de natação competitiva participando de campeonatos estaduais (RJ) e nacionais.